Há um livro muito bom chamado "Memórias de Adriano", escrito por uma francesa, Marguerite Yourcenar. Adriano foi um dos bons governantes que Roma teve. Ele ocupou o trono do Império Romano de 117 a 138 E. C., ou seja na primeira metade do séc. II da Era Cristã. O livro é uma "autobiografia", no sentido de que a autora penetrou tão profundamente na psicologia do biografado que ela e o imperador tornaram-se indiferenciáveis. É quase uma obra mediúnica.
Em uma passagem desse livro, Adriano, já sexagenário e enfermo (ele morreu de uma moléstia cardíaca, penso eu), com a mobilidade reduzida, relembra que um dos maiores prazeres de sua juventude havia sido a natação, uma atividade que, em seu precário estado de saúde, já não podia praticar. Ele dizia que havia nadado com tal paixão e tamanho prazer que era capaz não apenas de reviver suas sensações ao ver outras pessoas nadarem, mas era também capaz de compreender a sensação da própria onda que o nadador atravessava. Ele podia reviver o prazer de caçar e todas as suas sensações - a atenção, o arco na mão do caçador, o galope do cavalo sob seu corpo - e, ao mesmo tempo, participar do terror da presa, a urgência do instinto de preservação e os mil artifícios de fuga que a mente animal inspira. Graças a suas experiências da juventude, vividas com intensidade e total entrega, ele conseguia participar da natureza do nadador e da onda, do caçador e da caça.
Há um artigo do druida norte-americano Searles O'Dubhain em que ele expõe uma teoria dos elementos na tradição irlandesa. Como você deve saber, os quatro elementos da tradição ocidental mais difundida (água, fogo, terra e ar) têm origem no pensamento grego. O'Dubhain apresenta nove elementos na tradição céltica, que se manifestam no microcosmo, isto é, no ser humano (féinn, "si mesmo") e no macrocosmo ("bith", mundo). Ele acredita que, para a magia dos druidas ser efetiva, é necessário que os elementos do Féinn estejam em perfeita harmonia com os do Bith. Esse alinhamento do indivíduo com o mundo foi o que deu origem ao poema Duan Amhairghine, A Canção de Amhairgin, que começa assim:
Am gaeth i m-muir
Am tond trethan
Am fuaim mara
Am dam secht ndirend
Am séig i n-aill
Sou o vento sobre o mar
Sou a onda tempestuosa
Sou o som do oceano
Sou o touro com sete chifres
Sou o falcão no despenhadeiro
Você pode ouvir o original em gaélico antigo no You Tube: https://www.youtube.com/watch?v=MphBfoSUWrM
Graças a essa identificação entre as partes do seu próprio ser e os elementos do mundo, Amhairghin, o primeiro druida gaélico da Irlanda, foi capaz de entrar em contato direto com tudo que compõe a natureza. É algo muito mais profundo do que simples empatia. É a percepção de fazer parte de um todo, de um contínuo de vida com muitos núcleos interligados que interagem constantemente uns com os outros.
Quando essa percepção é alcançada, todas as coisas ficam em seus lugares. Há uma grande quietude e um silêncio musical. É uma sensação rara. Eu a tive poucas vezes.
É necessário estar aberto para o mundo por meio dos sentidos. Quando estiver sentado em um banco de praça, feche os olhos e tente ouvir tudo ao mesmo tempo: os pássaros nas árvores, as vozes das pessoas, os automóveis que passam, a água do chafariz, mas não detenha sua atenção em nada especificamente. Apenas deixe que os sons venham. Faça isso com os outros sentidos, um pouco de cada vez. Os sentidos são as portas pelas quais o mundo entra na consciência. As portas devem estar escancaradas para que o mundo possa entrar.
Texto de Bellovesos /|\